Ave Maria
Afetos 4:3
Por Giulia Dela Pace
Durante o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro 2022
A beleza singela e doce do curta “Ave Maria” é de aguar os olhos. Uma história ordinária que rompe e pensa barreiras binárias, não só de gênero, mas de relações parentais e papéis sociais. Com a meiguice e aconchego Pê Moreira fez um filme sobre o amor e os diversos sentimentos que atravessam uma família. E como disse a própria diretora, o filme é uma dedicatória e também uma lembrança – na abertura do Festival de Cinema Brasileiro de Brasília deste ano a cineasta reitera a dedicatória do filme a sua avó e a relação terna que compartilhava com ela.
Antes de tudo vale ressaltar a proporção de tela que tem ressurgindo em algumas produções atuais – o 4:3 –, pois era mais presente no cinema clássico até meados do século XX e foi caindo em desuso no cotidiano de produção conforme a tecnologia de lentes avançava. Assim, hoje em dia é um formato, que além de clássico, por não ter proporções épicas horizontais que lembrem panorâmicas, nos faz sentir menores e acolhidos dentro de um cobertor quentinho. Ou mesmo dentro de uma memória de álbum de família – o que a saturação das cores e direção de arte do filme também proporcionou muito bem. Este formato, sobretudo, ajuda o espectador a focar sua atenção mais na protagonista e nas personagens, menos no ambiente e o que acontece ao redor. O que cai como uma luva macia para um filme introspectivo e silencioso como esse. O 4:3 faz o curta parecer cafuné de mãe na silenciosa calmaria após um choro de criança.
E mais além, a tríade da construção imagética – direção, arte e fotografia – dialoga brilhantemente com as cores, os planos, os figurinos, as simbologias diretas e o ambiente contrastante das casas. Uma carregada de memória e histórias, onde transitamos em diversos ambientes, onde vizinhas entram e saem e tudo é compartilhado. E uma casa ainda em processo de construção de memórias. Assim, os dois ambientes também funcionam como personagens capazes de narrar e estabelecer contextos temporais e sentimentais das personagens. Aí também entram as cores, oscilando sempre entre azul e rosa, que permitem uma leitura de personagens que se complementam como mãe e filha, como homem e mulher ao mesmo tempo.
Infelizmente não pôde ser perfeito. Talvez pela falta de prática com a direção de atores e som direto, a atuação amadora do personagem Pedro quebra bastante com a fluidez das atrizes e da narrativa bem amarrada de “Ave Maria”, apesar da péssima dicção da protagonista Maria, considerando ainda o forte sotaque chiado carioca que tende a ser desastroso para a compreensão do espectador sem o auxílio de legendas quando o som direto e a direção não são bem executados.
Mas não há como culpar os e as cineastas envolvidos(as), considerando que a proposta e as restantes execuções do filme foram bem feitas e que o cinema nacional é suficientemente sucateado para se autossabotar.
Por fim, em “Ave Maria”, a protagonista não tem como centralidade de sua vida ser uma pessoa trans, mas uma pessoa que está iniciando sua vida, seus amores e amadurecendo seus afetos com a família, em busca de compreender que aquela instituição – tão cruel com a maior parte da população LGBTQI+ num país latino e cristão – não é uma obrigação, mas uma relação de amor que se escolhe participar, deixar e voltar.